terça-feira, abril 20, 2010

Tinha-te visto num dia

O dia cessara também.
Entrava uma luz incerta pelas janelas ainda por fechar.
Nada parecia realmente existir ali. Nem os móveis de madeira, nem os tapetes pendurados, nem os gatos.
Eram como fumo ou sonhos remotos que se perdiam nos quartos e nas salas da velha casa.
No alpendre, deixaras de existir.
Não morreras ao sabor de uma espada aguçada, ou de um acontecimento adverso. Simplesmente deixaras de existir na velha cadeira de baloiço agora imóvel.
Começava o tempo das outras coisas. O suspiro final antes do mergulho.
No meu quarto uma vela queimava os restos de luz que deixavam ver as pequenas partículas de pó suspensas no ar.
Ao longe os gritos retomavam a torrente da tarde que chegava.
Com o chegar da noite, as sirenes preenchiam os silêncios que ficavam.
O silêncio que agora me cortava a pele e me feria os olhos.
Do meu quarto, olhava as montanhas cada vez mais perto de mim.
Os fins de tarde nunca mais seriam os mesmos. Eram ondas que rebentavam no meu peito.
No resto da casa, a minha mãe corria pelas salas vazias, sem cor como todas as outras coisas comidas pelo tempo.
Passava aqueles fins de tarde fechando as velhas portadas de madeira que já não existiam.
As velhas portadas de madeira caídas algures num dia qualquer.
Com a chegada das sombras cumpria os rituais da solidão.
Ouvia-a chorar ao longe por coisas que não queria esquecer.
Tinha-a visto num dia em que abandonara o quarto.
Num dia em que tentara abandonar o quarto.
Vira-a qual fantasma pálido perdido naqueles corredores apodrecidos.
Pálida, com cinzas que lhe cobriam o corpo.
A minha mãe, uma memória presente, um sonho constante.