domingo, outubro 28, 2007

Para ti que ainda agora chegaste II

Deixei-te morrer num dia qualquer em tons de laranja que não pude agarrar. Enquanto o dia morria à minha volta, limpava memórias com a manga do meu casaco. O frio agora doía-me na pele, enquanto o sangue escuro secava nas minhas mãos. Com o braço trémulo, segurava um papel amarrotado que outrora escreveras. Enquanto lia, a casa pendia sobre mim. Todos os silêncios mortos, todos os mortos em silêncio, todas as sombras que me rasgavam a carne e todo aquele nada, aquele vazio, espreitavam sobre o meu ombro. Num negrume pérfido como que se o céu mais escuro se rasgasse e dentro dele saísse a mais profunda das noites.

“As janelas do autocarro são um ecrã panorâmico para o fim do dia à minha direita. Por um lado vejo uma fila interminável a caminho de uma outra cidade, mas por outro vejo definidamente os contornos do monte e as nuvens que foram puxadas pela ponta de um pincel. Confundo as luzes do autocarro com o seu reflexo e com as de tudo aqui à volta.”

Dentro de mim choravas só. Estavas morta, ou distante. Disso já não me lembrava. Num outro país onde ninguém se podia recordar de ti. Dentro de mim estavas só. Sentada encostada a mim dentro de mim, limitavas-te a chorar com o rosto escuro pelos anos passados. Pelos dias passados sem nós. Dentro de mim estavas só.


"Untitled"